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Escrito por
Márisson Fraga
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Imagine uma civilização onde cada pedra, cada rio e cada montanha era habitado por uma força viva. Onde o céu não era apenas céu, mas morada de divindades. E onde os mitos não eram histórias distantes, mas parte fundamental da vida cotidiana. Assim era o mundo dos incas, um povo andino que criou uma das mais complexas e fascinantes mitologias da América pré-colombiana.
Mas antes de falarmos dos deuses e dos heróis, precisamos entender o cenário em que tudo isso nasceu.
O contexto geográfico e cultural: o império entre os abismos
O Império Inca, ou Tahuantinsuyo — "as quatro regiões unidas" — se estendia por cerca de 4.000 km, abrangendo partes do atual Peru, Bolívia, Equador, Chile, Colômbia e Argentina. Seu coração era Cusco, considerada o "umbigo do mundo".
Os incas viviam em meio à Cordilheira dos Andes, cercados por vulcões, picos nevados, vales profundos e o mítico Lago Titicaca. Esse ambiente de contrastes extremos moldou sua percepção do mundo: viver era sempre caminhar entre o sagrado e o imprevisível. Para eles, a natureza não era um cenário — era uma entidade viva.
Mitos vivos: o papel dos deuses no cotidiano
Diferente da ideia moderna de religião como algo “à parte” da vida prática, os mitos incas estavam entrelaçados ao cotidiano. As colheitas, as guerras, os nascimentos, os casamentos — tudo era interpretado sob a ótica dos deuses e das energias do mundo.
Os incas acreditavam em um universo tripartido:
Hanan Pacha: o mundo superior, onde viviam os deuses celestiais como Inti (o Sol).
Kay Pacha: o mundo terrestre, onde vivemos, conectados aos animais, plantas e espíritos protetores das montanhas, os Apus.
Ukhu Pacha: o mundo inferior, das raízes, dos mortos e da fertilidade, governado por Pachamama (a Mãe Terra) e Supay (o espírito do submundo).
Esses mundos não eram separados — eles se comunicavam constantemente. O ser humano, então, vivia como um elo entre os três planos da existência.
Mitologia e psicologia: o símbolo como espelho da alma
Do ponto de vista psicológico, especialmente segundo Carl Jung, os mitos são expressões simbólicas do inconsciente coletivo — ou seja, de padrões universais da alma humana. São tentativas de dar forma ao que sentimos, mas não conseguimos explicar.
Viracocha, por exemplo, o deus criador que surge do lago e desaparece após dar forma ao mundo, pode ser visto como a imagem do “Self” junguiano: a totalidade psíquica, origem e destino do indivíduo. Sua partida remete ao sentimento de perda da unidade original — algo que carregamos até hoje em nossas crises existenciais.
Já Pachamama, a Mãe Terra, representa nosso vínculo com o feminino, com a nutrição, com a natureza. Quando a esquecemos — como temos feito em nossa sociedade moderna — adoecemos, não só no corpo, mas também na alma.
O que os mitos incas ainda têm a nos dizer?
Vivemos hoje num mundo extremamente racional, urbano, tecnológico. Mas, em meio ao barulho das redes sociais, do trabalho excessivo e da vida acelerada, muitos de nós sentimos um vazio difícil de nomear. Um cansaço existencial. Uma saudade de algo que nem sabemos o que é.
Os incas nos lembram que:
Precisamos de raízes — uma ligação com algo maior do que nós.
O sagrado está na terra, na comida que comemos, no gesto de cuidar, na conexão com o outro.
A vida é cíclica — tudo nasce, morre e renasce, como os mundos que Viracocha criou e destruiu.
Reconectar-se com essas narrativas pode ser uma forma de reencantar o mundo, dar sentido ao caos, integrar razão e sentimento, civilização e natureza, mente e corpo.
Conclusão: voltar ao mito é voltar para casa
Em tempos de crise — climática, emocional, espiritual — revisitar mitologias como a dos incas é mais do que estudar o passado. É um ato de cura. Porque os mitos não pertencem apenas aos povos antigos. Eles pertencem à alma humana. E onde há alma, há lenda. Há símbolo. Há esperança.
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Psicanalista, graduado em Ciências Contábeis, Estudante de Psicologia, Pós-Graduado em (1) Neuropsicologia; (2) Antropologia e (3) Mitologia Criativa. Escravizado por Livros. Expulso do Paraíso por buscar incansavelmente o Fruto do Conhecimento. Possui uma relação simbiótica com o medo!
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