Yeren: O Pé-Grande da China e o Eco Mitológico da Floresta

Nas montanhas enevoadas da província de Hubei, na China central, entre florestas antigas e vales pouco habitados, ecoa uma história contada por gerações: a do Yeren — literalmente “Homem Selvagem”. Figura robusta, coberta de pelos avermelhados ou castanhos, com cerca de 2 a 3 metros de altura, o Yeren é descrito como um ser meio humano, meio animal, que caminha ereto, evita contato com civilizações e deixa pegadas descomunais no solo úmido da floresta. Para os habitantes da região de Shennongjia, o Yeren não é apenas um mito — é um fato, uma presença.


Relatos que atravessam milênios

As primeiras menções ao Yeren aparecem em manuscritos da dinastia Zhou (1046–256 a.C.), onde textos sobre “criaturas peludas da montanha” já circulavam. Mais tarde, registros da dinastia Tang e Song voltariam a tocar no tema, descrevendo seres parecidos com homens, mas com comportamento animalesco. No século XX, no entanto, os relatos se intensificaram — especialmente após o caso de 1976, quando uma equipe de arqueólogos e soldados afirmou ter visto e perseguido um suposto Yeren em Shennongjia.

Esse avistamento gerou comoção nacional. Cientistas chineses, inclusive apoiados por instituições estatais, organizaram expedições oficiais, reunindo biólogos, folcloristas e militares. Pegadas foram encontradas, fios de pelos foram recolhidos e testemunhas ouvidas. O entusiasmo foi tanto que, nos anos 1980, a busca pelo Yeren tornou-se símbolo do desejo científico chinês de provar a existência de algo que escapava à lógica ocidental.

O Yeren como mito comparado

Jan Harold Brunvand, em seu estudo das lendas urbanas e rurais americanas, nos lembra que muitas histórias que parecem absurdas à luz da ciência moderna têm funções sociais e psicológicas profundas. O Yeren se encaixa perfeitamente nesse tipo de narrativa. Ele não está sozinho no mundo: tem primos mitológicos espalhados pelos cinco continentes — o Pé-Grande (Bigfoot) nos EUA, o Abominável Homem das Neves (Yeti) no Himalaia, o Mapinguari na Amazônia, o Orang Pendek, na Ilha de Sumatra, na Indonésia.

Essas figuras, analisadas sob a ótica da mitologia comparada e da psicologia arquetípica, representam o “outro selvagem” — um espelho do que a humanidade já foi ou teme se tornar. Estão sempre nos limites: da floresta, da razão, do tempo histórico. Surgem quando o mundo civilizado ameaça esquecer sua origem animal e natural. São, ao mesmo tempo, ameaça e lembrança.

Função simbólica e psicológica

Do ponto de vista psicológico, o Yeren simboliza o arquétipo da sombra, descrito por Carl Jung: tudo aquilo que é reprimido, indesejado ou incompreendido pelo ego consciente. Ele é o ancestral esquecido, o primata que habita os recantos escuros da mente, o elo perdido que desafiaria nossa ideia de progresso.

Sociologicamente, o Yeren aparece em regiões marcadas por isolamento geográfico, crise de identidade cultural ou mudança social rápida. Nessas circunstâncias, o “homem da floresta” pode representar tanto um protesto inconsciente contra o avanço da urbanização quanto uma tentativa de reconectar-se com o passado mítico da etnia han e de outros povos das montanhas, como os tujia e os miao.

O folclore como resistência

Ao contrário de lendas urbanas modernas — como o “Caroneiro fantasma” dos EUA ou o “homem do saco” no Brasil —, o Yeren resiste às investidas do tempo porque se ancora na experiência direta da paisagem. Ele não depende de mídias, mas de trilhas, névoas e sons noturnos. A cada nova geração, os avistamentos se adaptam, ganham contornos modernos (drones que falham misteriosamente, câmeras que não registram imagens claras), mas mantêm a essência: o mistério que habita o que não se vê claramente.

Além disso, o Yeren passou a integrar também o imaginário turístico e cultural contemporâneo da China, sendo explorado em produtos culturais, mascotes, museus e até festivais regionais. Tal como as aparições do Chupacabra nas Américas, ele flutua entre a crença popular e o entretenimento simbólico — sem jamais ser totalmente domesticado.

Conclusão: entre o mito e a ciência

Ainda que cientistas continuem céticos quanto à existência do Yeren como uma espécie desconhecida de primata, sua persistência como figura cultural, psicológica e mítica é inegável. Talvez o que os habitantes de Shennongjia vejam não seja um macaco gigante, mas o último respiro da floresta que desaparece, o vulto que restou da memória ancestral dos homens das montanhas.

Como Jan Harold Brunvand diria, lendas como essa não precisam ser verdadeiras para serem reais. Elas habitam o limiar entre o que se acredita e o que se teme, entre o que se busca provar e o que se precisa preservar. O Yeren, afinal, pode nunca ter sido encontrado — mas segue sendo uma das presenças mais sólidas da alma folclórica da China.

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